Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

20 de janeiro de 2012

Sobre a arte de escrever (a mim, a ela e a você)


   “Depois do barulho daquela alguma coisa caindo no chão e se partindo, nada nunca mais foi o mesmo”. As palavras se materializam, como se a realidade não passasse de um espelho daquilo que escreve. Deveria, ela, escrever então sobre as borboletas? Pairariam no ar sobre sua cabeça, como num conto de Caio? Ou deveria escrever algo como “Logo depois, aquela mesma coisa reintegrou-se, pedaço por pedaço, e, como num toque de mágica, flutuou de volta ao lugar a que sempre pertenceu”? Que deveria escrever, constatando o seu poder?
   Não constata. Põe-me de lado, como quem finge o poder de resistir a um vício. Acuso-lhe mudamente por mais uma fuga causada por seus temores de menina nova que tem medo de fuçar tanto lá dentro ao ponto de se deparar com um monstro que mesmo ela jamais previra, e ela entende. Consente o próprio medo dos abismos literários que cria para si me culpando e em que se joga às cegas como se não fosse suicídio, e sim homicídio, como quem se jamais houvesse visto os avisos. (Escrever é nocivo, Dama da Noite. Perigo!) Às vezes se esquece, pobre menina, e se lhe acuso é porque conheço-lhe o fundo e sei que sabe e que soube, que sempre soube disso tudo desde o princípio, desde muito antes que eu ou qualquer outro o tivesse escrito.
   Eu, que já estou mais do que familiarizado com o seu ritual noturno de pegar-me, amedrontar-se, renegar-me, e depois pegar-me, mais uma vez, exaustando-me (e a si) até depois do amanhecer, reconheço os sinais do fraquejar de sua resistência sem chances de erro. Como previsto, ela passa os dedos suavemente sobre toda a minha extensão, mirando os círculos aleatórios descritos no papel que se pretendiam palavras mas que, no momento, não passam mesmo de rabiscos, garranchos, desenhos rudimentares. Levanta-me, para então pressionar-me sobre a superfície irregular a sua frente em gestos ainda aleatórios à espera de. De. E de repente, sim, era isso, posso pressentir a excitação que perpassa cada veia de seu corpo desde o cérebro, eriçando cada fio de cabelo por que passa até alcançar cada membro, cada braço e antebraço. Mas é na ponta dos dedos que chego a sentir a excitação de fato, que, propagando-se como um raio de sol, me penetra rapidamente como se convertida em choque elétrico. E então eu sei, tão bem como ela, que depois do barulho daquela alguma coisa caindo no chão e se partindo, nada nunca mais foi o mesmo. E então eu sei, tão bem quanto ela, que se as palavras se materializam como se a realidade não passasse de um espelho daquilo que escreve, deveria escrever então sobre borboletas - "bastará esvoaçar sobre as cabeças, nunca pousar nelas" - como num conto de Caio. E então eu sei, tão bem quanto ela, que deveria escrever constatando o seu, o meu e o nosso poder – para, enfim, aquela tal coisa reintegrar-se pedaço por pedaço e como num toque de mágica flutuar de volta ao lugar a que sempre pertenceu, e assim, somente assim, realmente pertencer. A mim, a ela e até mesmo a você.