Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

12 de setembro de 2011

TUDO QUE EU NÃO SEI CONTAR

    
     A cada dia que passa, uma mesma velha vontade se agrava. Vontade de ser o outro, do lado de fora da casa, e não quem lhe observa, atentamente, da janela ou da calçada. O desejo se agrava. Desejo de ser a lágrima que ao peito lavra e não quem a recebe de braços abertos e pernas atadas. Jamais quem lhe abriga, não mais a face molhada. Desejo ser, eu mesma, a estrela que ilumina a estrada. Jamais o veículo morto, não mais o incólume corpo que apenas circula, circula, circula e pára. Desejo de ser o próximo que não eu, a quem tanto amor se promete, a quem tanto amor se prometeu, sem que precisasse gritar, escrever ou chorar sequer uma palavra.
    Mas não, não pretendo expor minhas mazelas a ninguém. Solidarizar as minhas mágoas, reconhecer a minha fragilidade e consentir o meu fracasso? Que me desculpem, mas eu passo – prefiro aturar mais cem anos da mais profunda solidão. Pelo que sei, se desejo voltar-me para o lado de fora, permitindo que vejam em detalhes minhas dores e meus males, me permitindo, em suma, confiar a minha suscetibilidade, tenho antes que lutar contra as minhas próprias tormentas interiores. De nada adianta habitar o paraíso quando se tem mil demônios por dentro querendo sair e destruir as flores. O problema é que em muitos momentos não consigo me impedir de pesar a impossibilidade desta batalha, abaixando a guarda para o desistir, lento. Jardins de fora, sempre tão belos se comparados às tempestades dos mares de dentro. Meus braços pendem moles ao lado do corpo ao serem empurrados pelas ondas para um lado e para o outro, e, depois, cada vez mais para baixo, cada vez mais fracos, cada vez mais rápidos, qual fossem meia dúzia de tentáculos a envolver-me todo. Lá embaixo, convenço-me de que se a morte é iminente, talvez o melhor seja morrer de morte lutada, já que luta é movimento, e que movimento distrai o cérebro, e que, assim, a dor dói muito menos. De volta à superfície, luto, não por convicção, e sim para me distrair da realidade da queda, do frio e da solidão.
    É quando vejo a palavra, sua existência, branda e calma. Ela tem jeito de gente, só que sem as farsas. A palavra é assim, não tem vergonha de ser feia e pálida, não tem vergonha de ser, de início, sempre tão mal empregada. A palavra não guarda orgulho, rancor ou mágoa de moça melindrada. Não teme ser posta de lado, não teme ser apagada. E, ao admirar a palavra, que é como uma luz branca que ilumina a escuridão mais profunda dessa minha longa estrada solitária, até me esqueço do medo. Sabendo inútil tentar resistir ao impulso de tocá-la, estendo as mãos, escancaro as palmas, e sinto o calor da luz que irradia penetrando cada centímetro do meu corpo em brasa, como que preparando-o pro momento em que toda a dor do mundo cessa, e o que resta é a sua luz eternamente branda, branca e calma.
    E o resto é mar...