Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

6 de março de 2011

MONÓLOGO DA MOÇA DA VITRINE


    Sendo bem franca, em nada me interessam os porquês de ver o meu eu refletido na superfície de um vidro qualquer e de não ver-me invertido, ou mesmo a composição química do metal que o sustenta. Em nada me interessam a matéria que vejo, doçura, ou seu limite e espessura, o que é tão bobo quanto pouco, entenda, e que pra mim é muito. Interessa-me o que não posso ver, tocar, sentir ou transformar em cálculos, frios. Interessa-me a matéria incerta que habita por trás dos tais olhos de vidro, compacta e invisível. Interessa-me a matéria humana que explica a existência do ser que habita o vidro e seus olhos cansados, assustados, seus olhos acovardados frente às luzes da cidade e suas outras tantas crueldades físicas – porque é nisso que existir implica, aceite, entenda, e parta pr’outra vitrina, pr’outra vida, pr’outra sina.
    A matéria humana é minha matéria-prima, e por isso preciso dos outros. Mas minha matéria-mãe, se é que isso existe, continua sendo a solidão da rua fria em que caminho, preenchendo com silencios o próprio vazio, me protegendo do frio e seguindo, seguindo, seguindo.