Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

2 de janeiro de 2011

A ORIGEM


    Desesperados por ainda não saber, esperamos a hora certa de ligar a TV pra que ela diga quem somos ou devemos ser – rezando pra que não seja tarde demais.
    Formas confusas se cruzando no ar diante dos olhos. Ou seriam os olhos confusos a se cruzar diante das formas do ar? Ou o ar confuso por não ter muito a acrescentar – nem ao texto, nem a gente, nem a nada além de si, o próprio ar?
    - Já chega, amigo, esse experimento está indo longe demais.
    Sangue corrompido, corpo violado – vômito e gozo confundindo-se na dureza fria da madrugada do asfalto.
    - Mais uma dose?
   O efeito se esvai aos poucos, deixando pra trás um estranho retrato: vou recuperando a capacidade de ver, passo a passo, além do contorno, o resto do corpo que repousa ao lado.
    Não sei se falo. Ou melhor, não sei o que falo. Ou melhor – ou pior – apenas não sei. Se acredito na presença ilusória do outro corpo debaixo do meu ao adentrar a noite, eu não sei. Se me acredito aqui parado de volta à realidade sóbria e torpe do estar estando, do estar esperando por qualquer coisa como o amor, o desespero ou a morte, não necessariamente excludentes, eu não sei. Se acredito que a realidade seja ou não um sonho alcançável pela eterna presunção de saber e se saber, ao passo que.
    - Ei. Alguém aí?
    Como quem suga o veneno de uma mordida certeira, também a corrida do tempo age a drenar-me do sangue as últimas gotas da anestesia febril beirando inconsciência a que submeti as próprias veias, derradeira, para que.
    - A gente viaja assim durante, e não depois. Que há de errado contigo?
    O corpo todo estala, imitando os dedos, e ecoa na cabeça, gongo, zonzo, gongo gongando galgando gritando acorda sobriedade consciência. Estou acordando de um sonho ou sonhando de novo? E o que acontece se eu.
    - Mais uma dose?
  Desde pequenos fomos programados. Desde pequenos nós comemos lixo. Mas agora é a nossa vez: um futuro feito de pedras falsas de brilhantes é o que aguarda nossos cérebros bem lavados, é o que a gente fez. E depois, a morte. Ou antes.
    - É claro que eu to a fim.