Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

29 de dezembro de 2010

O HOMEM PÓS-HISTÓRICO

   
     Às vezes sinto que este lugar está ficando pequeno demais para todos nós. Já não há mais esconderijos ou portais secretos ocultando espaços de aconchego. Foi-se o tempo em que, dotado de uma coragem ingenuamente pura e sábia, o homem que era Homem permitia, a si, assumir a paternidade do sangue que jorrasse e, à ferida, que da vida não se ocultasse. Esse Homem, esse bom Homem precisa de espaço, aqui escasso. Esse Homem morre homem, insuspeitado. Esse homem morre sufocado.
     No tempo da maldade, em que já somos, há muito, nascidos, há o segredo forçadamente partilhado, assim como a falta de privacidade e a vergonha evidenciada e pulsante de não conseguirmos olhar uns aos outros direto nos olhos. Só restam essas máscaras caducas que as mulheres-gato usam para ocultar suas bocas desdentadas, descaradas, desorientadas, des, enfim, além de algumas poucas, raras tentativas de resgatar alguma coisa – qualquer que seja – do que havia aqui antes do breu, da chuva e do ontem fatídicos, realidade infelizmente eternizada; tentativas ingenuamente puras e sábias (e, por isso mesmo, suicidas) como esse texto, a que me dedico, insensata, como se fosse salvar-nos a todos de nós mesmos e do abismo do nada.
     Qual o maior erro de doar-se a um texto, exceto a impossibilidade de recíproca verdadeira por parte de um papel tão inanimado quanto o que o abriga? A palavra escrita não passa mesmo de um sonho que se finge de vida para alimentar a ilusão de que sou inteira, quando me sei vazia, ou, pior ainda, esvaziada, esvaziada de passado, como todos os outros. Eu sei. Eu sei. Mas, como um alcoólatra que não dispensa sua paixão, também eu necessito dela para me orientar e desorientar; para me fazer sentir ativa e manter o cérebro em movimento, aquecido, assim afastando-o da quase inevitável paralisia do conformismo que se espalha pelas casas como uma cegueira em formato de praga, moda ou mania, contaminando ainda mais que o medo e o desespero de viver no centro do universo do capital monetário especulativo às três horas da matina. Escrevo para me manter sensível ao que acontece fora das grades do meu condomínio. Para continuar Homem, mesmo que isso signifique dançar a beira do tal abismo. Para manter-me no meu sincero e ingênuo suicídio consentido.
    Sou a epígrafe de mim, entenda, em todos os sentidos. E tu, vida, és meu epitáfio.