Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

20 de dezembro de 2010

R.I.P.


     Certeira foi a frase que me partiu em dois: o antes e o depois dela ter-me partido - e partido.
     A água bate sobre a cabeça, que dói, e escorre por todo centímetro do meu corpo em que já houve você; vai erodindo a pele, eliminando vestígios, conduzindo ao ralo, pensamentos, movimentos, sacrifícios - memórias fortes, memórias fracas - e toda a nossa história de papel ofício, deixando marcas. Tanta coisa embaralhada, tanta coisa descarada que dispo na hora do banho, tanto sentimento, tanto ressentimento, tanta dor se fundindo e confundindo com as gotículas de água gelada que deixam a pele arrepiada por lembrar-lhe de que está perdendo – e que tanto já foi perdido, e não volta com o tempo. Já diziam mesmo que a canoa do amor era sempre furada, e terminava em triste, temerosa jangada de blues, ausências, cicatrizes e piedade aguada. Estavam certos.
     O atestado do óbito de nós, assinamos há mais ou menos um mês, quando me empurrou para debaixo do chuveiro de uma vez, dizendo: Não suporto mais esse teu cheiro de veneno. E então, eu que fui tão pequeno, eu que fui puro engano, eu mudei de plano e disse adeus - palavras que você ia pondo pouco a pouco em minha boca ao empurrar, inconsciente de estar preparando o meu corpo prum outro corpo, prum outro cheiro, prum outro gosto e, assim, prum novo e irremediável “nosso adeus”.
     A água me livra da saudade e das últimas gotas de pesar. A cabeça dói, cansada, e saio triste, pesada e marcada. Mas de alma lavada.


"Você quer mesmo escrever? [...] Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a "função social", nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te."
CARTA AO ZÉZIM - CAIO F. ABREU