Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

14 de agosto de 2010

Comédia Humana


Silencioso espectador e admirador de seus feitos e efeitos, percebo ter chegado ao ponto em que faço muito bem o papel do "outro", com uma facilidade que jamais poderia ter previsto. Chamo-o, digo, me chamo assim, "outro", por ter sido, por muito e há muito tempo, o "um": protagonista, principal, persona mui eloquente das ideias pululantes, astro-rei. Assim sendo, não submetia meus princípios a julgamento público, ou sequer me importava com a insistência de alguns em fazê-lo, apesar disso. Até ria! Não via a mim mesmo como alguém que pudesse hesitar na procura de qualquer coisa significante e profunda, até porque não tinha dúvida de que ao procurar o mais fundo, não importasse o quanto tivesse que escavar para alcançar esse mais fundo, eu chegaria ao mais fundo. Intencionando não valorizar o processo, mas o fim, repito: eu chegaria. Apesar do medo, apesar do meio e das gotas de sangue, eu chegaria. Eu sempre chegaria. E ao mais fundo. Hoje, a imensa necessidade que sinto de valorizar os meios se deve à incerteza que ronda os meus atuais fins, além da certeza de que, se eu não chegar lá, nem procurar algo no processo que me impeça de sentir o fracasso congelante dos perdedores tomar conta das minhas veias, dos meus ossos e dos meus órgãos, perderei ainda mais, muito mais que o fim não-alcançado: perderei o chão, a razão e os sentidos. Perderei-me. Como você deve ter se perdido lendo esse texto. Tudo bem, também eu me perdi. E hoje tanto me perco, hoje tanto perco, que perdôo, tanto a mim quanto a ti, por cometermos tamanho delito, começando de novo, dessa vez pelo fim. Fim, que tanto é o que sou quanto o que sou é o fim. Fim do que fui, do que foi e do que fomos, antes da Grande Explosão. Permita, pois, que me reapresente: persona non grata, espectador, na fala, sentado na sala, a esperar. Leio nas cartas que achei jogadas no sótão as palavras que gostaria que me dissesse, mas não diz. Ah, como queria que fossem pra mim. Então, nesse papel, desse lado do papel, o meu eu hesita, vacila, falha, meu eu cai pesadamente no chão. E quando chega a hora, quando ouve-se da porta o baque de seus pesados passos de general, me recomponho, para que entre, me mande e me monte, me diga e desdiga: Não sei se ainda sei ser feliz nessa vida. E então, é fim.