Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

13 de julho de 2009

Sobre o fim da maioria das coisas (e a persistência em algumas delas)

Em uma pequena aldeia francesa morava a família Partie, cuja fama provinha de um estranho e inusitado hábito: o de colecionar coisas. Cada membro da família Partie possuía sua própria coleção. Não se sabia ao certo quando ou como isso se iniciara, porém conservava-se essa tradição com o maior fervor.
Era o fim do século XVI e início da dinastia Bourbon no país, quando nasceu a doce e frágil Annemarie Partie. Seus pais, Adele e Burnier, e seus irmãos, Chermont, Eleonor e Clarisse, ficaram tremendamente felizes ao recebe-la. Adele colecionava cacos de vidro – sempre que ouvia o barulho do quebrar de uma garrafa ou de uma janela, procurava-o atentamente até encontrar sua origem e poder pegar ao menos um caco para sua coleção. Casara-se com seu primo, Burnier, que colecionava rótulos de garrafas de vinho, justamente por possuírem taras que se encaixavam perfeitamente (Sempre que ele achava uma garrafa de vinho, retirava o rótulo, quebrava-a e deixava que Adele se deliciasse com o que restasse dela). Chermont colecionava rodas de bicicleta, Eleonor, retalhos e Clarisse, cestos de madeira. Desde o primeiro momento em que souberam que Adele estava grávida de Annemarie, começaram a se perguntar o que esta colecionaria, ao nascer. Cher apostava que ela colecionaria botões, afinal o formato deles combina muito com os objetos de sua própria coleção e era óbvio que a menina gostaria de se espelhar no exemplo do irmão mais velho. Eleonor duvidava. Para ela, Anne colecionaria bonecas de pano, pois se inspiraria no material dos objetos de sua coleção pessoal. Clarisse, mais contida, estava resolvida por não dar sua opinião e, Burnier, turrão como só, insistia que seu filho seria um menino e colecionaria barcos de papel. Até os cidadãos da aldeia entraram na aposta, cada um divagando mais que o outro.
Foi para surpresa geral que Annemarie, ao nascer, não manifestasse um gosto especial por nada. Contentava-se com o leite do peito e o da vaca. Gostava de brincar com a boneca de pano e o carrinho de rolemã (ou algo semelhante a isso). Corria atrás dos porcos e das galinhas. Usava lenços rosas e azuis. Sentia-se bem descalça ou com sandálias. Amava a todos, sem preferências. Via o mundo como a mais perfeita criação que poderia abrigar sua existência, que era divina, digna de apreciação em cada detalhe, micro ou macroscópico. Exalava amor, inspirava amor. Era amor.
Mas o mundo em que vivia, o mundo que tanto amava, impunha à doce Annemarie a necessidade da escolha. Os anos se passavam e mesmo que a ansiedade da aldeia tenha se inquietado, o mesmo não ocorreu com sua família. As maiores lembranças que leva são de olhares, não de reprovação, mas de espanto: “Por que essa menina não se interessa por nada?”. Foram incontáveis as vezes em que abafou o choro com seu travesseiro multicolorido por não se achar digna da própria família. Quando a dor se agravava, costumava se esconder entre as raízes das grandes árvores amontoadas em seu jardim para conversar com as formigas que ali viviam.
E os anos se passaram. E a doce Annemarie Partie, outrora pequena, se transformou em uma bela moça. Como se sentisse excluída da família, passara os anos devorando livros de todos os tipos, o que a tornou ainda mais interessante. Assim, não tardou a arranjar um noivo, casar-se e ver-se livre da vida do campo. Então, pouco antes de completar os quinze, Annemarie deixou sua aldeia para nunca mais voltar. Não mandou notícias, tampouco, ou nada que pudesse indicar à família onde se encontrava naquele momento. Perderam-se por completo.
Mas um fato permanece um fato e só não o vê quem não quer. A verdade é que Annemarie possuía, sim, uma coleção, esta, de valor era inestimável. Não necessitava de botões, bonecas de pano ou barquinhos de papel. Não guardava, tampouco, amarguras ou feridas da vida. Não as colecionava.
Da coleção de Annemarie Partie só fazia o que era mel e seda, e cândido e azul. E mesmo que o mundo inteiro silenciosamente gritasse e discretamente apontasse para o que se assemelhava a uma deficiência, isso não mudaria nela. Porque o que é poesia prevalece. O que é amor prevalece. O que é verdade prevalece. O que é sonho prevalece.
Essa foi a historia de Annemarie Josephinne Partie, a menina que colecionava sonhos.