Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

25 de agosto de 2013

Arte que morre


     Partindo dos meus olhos, reflexo. Atrás do reflexo, vidro. Atrás do vidro, um poste. Atrás do poste, fio. Atrás do fio, janela - sem vidro. Atrás da janela, a senhora. Atrás da senhora, vazio.
    Apareceu-me como obra de arte, emoldurada pelas extremidades retangulares do balcão em que apoiava o seu cansaço secular. Tinha a pele e os olhos cinzas como o céu, como o sobrado, como os fios de telefone que ligavam os postes e cortavam sua bela imagem, violentamente. Ainda assim, violada, mais parecia pintura, dessas raras, que não basta contemplar. E de repente me deu uma vontade enorme de cutucar qualquer um a minha volta, apontar para ela pela janela entreaberta e dizer olha, olha, olha só que coisa mais absolutamente bela e triste. Mas não apontei para ninguém. Apenas continuei olhando para ela, e por um segundo pude jurar que também a vira repousar os olhos sobre os meus, dentro dos meus, como que deixando-lhes morrer um pouquinho mais lá. Sua boca parecia se mexer, contrastando com seu olhar fixo; balbuciava palavras que eu não compreendia, que não poderia compreender, me fazendo sentir queimar no fundo do peito uma vontade crescente, não, uma necessidade crescente e absurda de gritar para, de descer imediatamente do ônibus, de atropelar pessoas, carros, postes, fios e tudo mais que se pusesse no meu caminho, de atravessar correndo aquelas ruas cinzentas e frias e abraçar longamente, eternamente aquela triste figura, tentar colorir de alguma forma o conteúdo cinzento daquela moldura, ou talvez apenas chorar, chorar, chorar o resto da vida pelo fato de não poder ouvi-la, de não saber decifrá-la e de vê-la desaparecer assim, em menos de um piscar de olhos. Porque mal começara a sentir o germe do desconforto a se anunciar no estômago, mal a senhora repousara seu olhar fundo, dolorosamente fundo dentro dos meus olhos, mal começara a abrir a boca para dizer-me tanta coisa importante que eu estava fadada a desconhecer, o sinal já havia aberto, o ônibus já se movera, e a sua imagem tão bela, obra de arte tão rara, como se fosse um nada, já se dissipara.
     E então.
     Então, nunca mais.