Partindo dos meus olhos, reflexo. Atrás
do reflexo, vidro. Atrás do vidro, um poste. Atrás do poste, fio.
Atrás do fio, janela - sem vidro. Atrás da janela, a senhora. Atrás
da senhora, vazio.
Apareceu-me como obra de arte,
emoldurada pelas extremidades retangulares do balcão em que apoiava
o seu cansaço secular. Tinha a pele e os olhos cinzas como o céu,
como o sobrado, como os fios de telefone que ligavam os postes e
cortavam sua bela imagem, violentamente. Ainda assim, violada, mais
parecia pintura, dessas raras, que não basta contemplar. E de
repente me deu uma vontade enorme de cutucar qualquer um a minha
volta, apontar para ela pela janela entreaberta e dizer olha, olha,
olha só que coisa mais absolutamente bela e triste. Mas não
apontei para ninguém. Apenas continuei olhando para ela, e por um
segundo pude jurar que também a vira repousar os olhos sobre os
meus, dentro dos meus, como que deixando-lhes morrer um pouquinho
mais lá. Sua boca parecia se mexer, contrastando com seu olhar fixo; balbuciava palavras que eu não compreendia, que não poderia
compreender, me fazendo sentir queimar no fundo do peito uma vontade
crescente, não, uma necessidade crescente e absurda de gritar para,
de descer imediatamente do ônibus, de atropelar pessoas, carros,
postes, fios e tudo mais que se pusesse no meu caminho, de atravessar
correndo aquelas ruas cinzentas e frias e abraçar longamente,
eternamente aquela triste figura, tentar colorir de
alguma forma o conteúdo cinzento daquela moldura, ou talvez
apenas chorar, chorar, chorar o resto da vida pelo fato de não poder
ouvi-la, de não saber decifrá-la e de vê-la desaparecer assim, em
menos de um piscar de olhos. Porque mal começara a sentir o germe do
desconforto a se anunciar no estômago, mal a senhora
repousara seu olhar fundo, dolorosamente fundo dentro dos meus olhos,
mal começara a abrir a boca para dizer-me tanta coisa importante que
eu estava fadada a desconhecer, o sinal já havia aberto, o ônibus
já se movera, e a sua imagem tão bela, obra de arte tão rara, como se fosse um nada, já se dissipara.
E então.
Então, nunca
mais.