Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

1 de abril de 2013

Sobre todo hiato


    Há tanto não escrevo, que já não me conheço. De que consistirá hoje este ser a cuspir palavras displicentes sobre uma tela há muito desgastada? Será uma fera, embelezada pelo clamor dos poetas, a suspirar pelas estrelas, e que no fundo é só mesmo tristeza, mágoa e lamentação? Ou então uma princesa, a proteger-se dos espinhos e das rocas, dos sussurros da aurora, maus agouros passados? Ou apenas um fado, destino cruel consolidado qual fosse a vida, um palco, verossímil, relapso e, ainda assim, sensível ao toque, ao passo?
     Ah, já não sei dizer. Cada farpa tocada foi me deixando assim, mutilada, mortificada, mutada. E se hoje não defino quem, como ou quando sou, como explicar esse ardor no fundo no peito de coisa inacabada chegando a um fim desordenado, desorientado, desorganestrambelhado de consequências mil? Talvez por isso não escrevesse, tomada pelo medo de certos consentimentos certos. Mas alguma coisa em mim ainda se recordava de que o que é dor sempre dói, exposto, descrito e dissecado, ou não, e que escrever não é nada além de mergulhar um pouco mais fundo naquilo que já existia e feria. Pode te fazer sangrar, gritar e sentir-se mais perto da morte, mas, afinal, já não sangraria, gritaria e assim se sentiria de qualquer modo? Quem tem furos sabe que o fundo do poço não existe para certos alguens. Por isso, melhor mesmo é despejar no papel as caraminholas da cabeça, que, lá dentro, são tão, tão feias. Tornam-se bonitas, como as borboletas - nem se ressentem das lagartas.
     Assim também sou eu, que criando fins ilusórios para uma estrada inacabada, já não me ressinto de nada  - pronta e prestes a bater asas. Só me resta saber para onde partir.