Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

10 de junho de 2010

Cartas para além do.


O leite acabou. Meu tio morreu. Minha menina me largou e sinto frio nos pés. Mudei-me de novo. Ando pensando em você. Recebeu meu presente de aniversário? Não consigo dormir direito. A psicóloga colorida cantou Let it be e disse que eu precisava largar o vício. Meus óculos quebraram. Fale comigo. Comprei um abajur novo. Ele me lembra você. Faz dois anos desde a primeira. Tive um filho, Pedro, não é bonito?, mando uma foto. Por onde anda e por que não me responde? Já faz três anos e. Essas cartas que te escrevo, será que não recebe? Sempre soube que terminaria assim. Essas lentas facadas no peito de palavras jamais lidas. Sei que não gostaria de me ver assim mas. O leite acabou de novo. Essas palavras que você não entende, que sequer olha, me cortam como nada jamais. Mas eu. Nunca saberá o quanto as palavras que não vê ou o quanto tudo isso. Nunca abriu as minhas cartas, não é isso?, se estiver enganado, por favor, me corrija, mas aposto como as vê todo o dia, aposto como olha o endereço e pensa: "Maldita, por que não paras de me importunar?", aposto. Aposto como já deve ter lido uma ou duas delas e rido "Como és patética, minha cara" e ateado fogo às restantes. Sim, deve ser isso, deve ser essa a causa da queimação constante que sinto no fundo do estômago, disseram que era falta de comida mas aposto, aposto como queimou as cartas, aposto como tomou vinho ao lado de sua mulher de plástico enquanto as via queimar na lareira a sua frente, consigo até ver o reflexo das labaredas no fundo de suas pupilas dilatadas e, ah, sim, o fogo dilata suas pupilas, como um flash emitido pela câmera profissional de um amador em dia de celebração sem vinho faria. Mas nesse momento de queima de palavras, você bebe o vinho, acaricia a cintura de sua mulher e a come como jamais comera antes, mas sem olhar-lhe nos olhos, pois que tem o corpo, a alma e a cabeça nas labaredas, somente nas labaredas. Mal sabe, você, que por trás do eu patético e rastejante que passa anos escrevendo cartas que não lê e que machucam, existe o eu inquieto, áspero, desesperançado, irônico e, acima e além de tudo, certo de que escreve essas cartas vazias para que você não leia, para que as atire no fogo e para que coma a sua mulher olhando pro fogo, pensando no fogo, para que foda o fogo em pensamento, labaredas minhas, pedaços de mim. Sim, escrevo para que me coma, me devore, invisível, através dela, por trás dela, ao invés dela, sem saber. E engano-te, maldito. E prendo-te a mim.
O leite acabou de novo. Agradeço pela noite passada.