Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

27 de maio de 2010

A coisa mais bela


Vem cá que eu tenho umas coisas pra te dizer. Senta, senta, mas não te preocupes, não são muitas, essas coias, só umas três, duas, talvez até uma, dependendo do seu ponto de vista e grau de receptividade e, entenda, com isso não pretendo te induzir a receber bem aquilo que estou prestes a te falar, ou sequer pressupor que não o fará. De qualquer forma, deixes pra lá, que hoje é teu aniversário e não tenho a intenção de prender-te muito, deves aproveitar bem o dia, tomar café com família, essas coisas, ou mesmo ficar sozinho; seja como for, deves aproveitar bem o dia: carpe diem, como diriam. Quem? Ora, não tem importância. Digo, eles. Bem, quis dizer. Quero dizer, aproveite o dia. O dia. Lembras deste dia? Um ano atrás, as flores, os perfumes. A cor do dia e dos beijos. Lembras de mim? Sou aquele cara de trezentos e sessenta e cinco dias atrás, umas rugas mais. Os faróis acesos indicando quase-flagras, lembras?, as batidas de nossos corações numa sintonia nunca antes vista; minhas mãos nas tuas, as tuas nas minhas, tuas mãos sorrateiras deslizando sobre a minha pele naquela noite, derradeiras, despencando como ladeira pra dentro das calças; nós dois entrando na tal noite como dois amantes que se amam, se amando. Não que o amor acabe, digo, não acredito nisso. Ando menos cético, entendes?, mais Leminski. Ou talvez Lavoisier, enfim, não que isso importe, foi só uma observação. Duas, no caso, mas. Nossa, desvio fácil. Do foco, e tudo. Mesmo sendo... Nossa. Mesmo sendo tão importante quanto, de fato. Fato, fato. Fato é que sinto falta de noites como aquela, das lágrimas de dor compartilhada(s), de. Bem, eu sinto falta de muitas coisas, não só dessas grandes, entendes?, também sinto falta das menores, das pequenas, daqueles pequenos olhares cúmplices, dos comentários maliciosos, das tolas disputas por razão, das palavras melosas, dos excessos de riso, das urgências, da companhia vinte e quatro horas por dia. Essas ausências pequenas que se tornam tão grandes, as grandes; essa ausência tão grande que me acostumei a chamar de falta porque assim dói menos, ah, ela me rasga no peito sempre que abaixo a guarda. Espero que estejas entendendo aonde quero chegar, querido, espero que entendas que sei que fostes em minha vida a pessoa mais bonita e que não era intenção tua causar-me nenhum mal. Sei, ainda, que a causa do mal foi toda minha, que, não fosse eu, nem sozinha estaria. Mas a questão é que a perda de ti implicou em mim a perda daquela alguma coisa a mais que me mantinha viva: que ao cravar as unhas em ti e arrancar-te de mim como o fiz, não percebi que havias penetrado em algum lugar bem mais fundo de que nem eu tinha conhecimento e que, ao ser arrancado, puxado, levastes contigo essa parte, abristes um buraco por onde, gradativamente, foi deslizando pra fora de mim tudo aquilo que possuía o mínimo de substância, de sentido. Repito, amigo, sei que não o fizestes por mal. Mas é verdade que arrancastes a tampa de minha caixa de Pandora e minhas virtudes foram todas embora. Vejo esses males todos que de mim tomaram conta, essas fugazes distrações, esses momentos de alarmada alegria momentânea, sem falar dessas muitas coisas que me vejo fazer e sobre as quais não exerço o menor controle e que, entenda, não chegam mesmo a me incomodar, mas acabaram por me transformar em algo que tu jamais amarias. E o que fazer se me transformastes neste monstro, mesmo que sem saber, e se não me resta sentimento algum além desse amor impossível que nutro por ti, e somente por ti? E nesse desespero, nesse cárcere sentimental imposto por um conjunto de tragédias circunstanciais, nesse contexto de ferida exposta cheirando a podre e aperto constante no peito, prendo-me às pequenas coisas que dizes, que fazes, às migalhas de afeição que vezenquando atiras em minha direção, às lágrimas de mel que surgem nos olhos quando tu passas, a qualquer, qualquer oportunidade, por menor que seja, em que possa dizer-te cada uma dessas coisas que eu nunca pude, ora porque não as tinha claras, ora porque as palavras cediam lugar a lágrimas; qualquer oportunidade, como essa, um aniversário, um dia em que classicamente dizemos ao outro uma série de coisas bonitas, muitas das quais nem ao menos são verdades, mas devem ser ditas por simples formalidade, reproduzindo frases prontas, clichês pré-moldados. Aproveito-me dessa oportunidade, não pra descarregar em ti culpas que não te pertencem, mas pra lembrar-te de um algo que te disse há tempos e resistiu a eles, que habita todo o ar que não respiro e lugar que não habito, e também o líquido que corre em minhas veias e a porteira de madeira e o muro da cidade - minha alma-poeira vendo a sua tranquilidade e doendo o tempo todo, fantasiando palavra pra ver se passa - e a cada passo, sim, que se dá pelo mundo afora, ou mesmo dentro, cada passo que dou pra fora ou pra dentro, pra fora ou pra dentro de mim: Tu és a coisa mais bela que eu já vi.