Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

15 de dezembro de 2009

El color de las calles sin perfume de menta


I


Eu a vi apoiar-se na borda da pia, talvez porque achasse que, não o fazendo, correria o risco de cair. Ou talvez fosse eu quem achasse que corria o risco de cair. E mesmo assim, permanecia sentado, encarando o reflexo de suas pupilas dilatadas naquele espelho sujo daquele banheiro sujo de nosso quarto imundo.
Eu a vi apoiar-se na borda da pia, admirando o próprio reflexo na superfície daquele espelho sujo. Segurava firmemente o rímel preto em uma das mãos enquanto, na outra, pendia um pé de seus sapatos vermelhos. Deus, como ela adorava aqueles sapatos vermelhos! Deus...
Eu a vi apoiar-se na borda da pia, segurando um rímel como quem segura cintura de mulher bonita, daquelas que não se compra, ou aluga, como faríamos nós. Eu, ela, você sabe. Quer dizer, presumo que saiba. Quer dizer, quem não sabe?
A questão é: eu a vi apoiar-se na borda da pia. Vi as dobras de seus dedos muito brancos fraquejarem e parecerem ainda mais brancos ante a luz que provinha das estrelas. Não, não estou tentando ser poético, o que quero dizer é que... a luz vinha das estrelas e, bem, era a única luz que havia ali. Mas era poético. Quer dizer, era bonito. Sabe, daquelas belezas que a gente tem vontade de congelar, assim, como em uma fotografia, mas nunca consegue. Porque a gente pisca, você sabe. Principalmente quando as pupilas se dilatam.
Pra variar, aqui estou eu fugindo pro foco. Você sabe, do foco.
Eu a vi apoiar-se na borda da pia. Suas expressões pintadas em degradê:
Vermelho-sangue
Amarelo-cólera
Verde
Azul
Branco
Branco
Branco
Cinza
Branco
Branco...
Cinza.
Sangue e Cólera. Autopiedade e humilhação. E cólera. E sangue.
Eu a vi apoiar-se na borda da pia e crescer, crescer, crescer, adquirindo um tamanho incrivelmente maior que o dela, que o meu. Olhou-se no espelho, mão na cintura, batom vermelho. Pupilas dilatadas.
Eu apenas nunca saberia dizer por quê.



I
I

Apoiava-me na borda da pia com força tal que as extremidades de meus dedos brancos e finos parecessem torná-los cada vez mais brancos e finos. Apoiava-me na borda da pia, pois sabia que, se não o fizesse, estaria correndo o sério risco de cair e, caindo, correria o sério risco de me contaminar com sejam-lá-quais-fossem as doenças que pairavam sobre aquele chão sujo e molhado, naquele ar sujo e molhado de banheiro sujo e molhado. Eu, ele, você, tudo. Tudo sujo, tudo molhado. Talvez eu estivesse enlouquecendo, mas minhas pupilas haviam dilatado e eu tinha medo, eu tinha muito medo que o vermelho da minha boca assustasse quem quisesse chegar mais perto e, se isso ocorresse, que fosse por causa das minhas coxas. Sim, eu tinha muito medo que me olhassem primeiro as coxas, por isso o rímel, desviar a atenção pros olhos, pras pupilas, pras pupilas que haviam dilatado e me feito acreditar que estivesse quase louca. Ou talvez eu estivesse, afinal. Talvez fosse essa loucura o que me mantinha viva e brilhante, ou talvez fossem os sapatos vermelhos. Deus, como eu adorava aqueles sapatos vermelhos! A coisa das pupilas me intrigava. Aproximei-me do espelho e pisquei algumas vezes. Continuavam dilatadas. Foi quando eu percebi que uma tristeza desesperada que ali habitava e de que eu jamais havia me dado conta. Prendi-me a ela por alguns instantes até que começou a crescer, crescer, crescer, tomando conta de mim, se alastrando cancerinamente por todo o olho, em seguida nariz e boca, orelhas e pescoço, a alça do vestido preto e o bracelete de cobre enferrujado, minhas unhas sujas de rímel barato e tinta de caneta e até os meus sapatos, meus lindos sapatos vermelhos! Ela me prendia. Sempre me prendera. Olhei-me no espelho. Mão na cintura, batom vermelho. Pupilas dilatadas.
Eu apenas nunca saberia dizer por quê.



III

Levantou-se e foi até ela, que quase petrificada permanecia a admirar seu reflexo. Disse vamos e ela, espera. Espera um pouco. Calçou seus adorados sapatos vermelhos. Ele disse vamos e ela, espera. Espera mais um pouco. Voltou-se para o espelho com o peito estufado, como quem quer se fazer passar por caçador e não caça, e gritou DESSE JEITO A GENTE AINDA MORRE ASFIXIADO. Ele disse sufocado. Ela acenou com a cabeça, e entraram na noite.






"Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu, olhando-se bem nos olhos em frente ao espelho. "
Caio Fernando Abreu em "Sapatinhos Vermelhos"