Eu quero a palavra sutil que se infiltre lenta na superfície dos teus cabelos negros,
que te penetre os olhos e os ouvidos e depois, mais rapidamente, avance sobre a tua alma,
depois o fígado, o pâncreas e todos os demais órgãos vitais – quiçá até o coração -
para só então te tocar a mente, mas só então, tão e somente.

7 de abril de 2011

A CANECA VAZIA


    Segunda. Vinte e quatro. Um. Dois mil e alguma coisa. Nove e cinquenta e seis. Noite.
    A cafeína acabou. Engraçado. Irônico. Pouquíssimo criativo começar mais um texto assim. Mas se ele já foi iniciado, e se o foi assim, não há nada que se possa fazer exceto continuar a partir deste ponto até chegar ao fim: A. Cafeína. Acabou.
    A cafeína acabou. Todos sabem que a cafeína é o combustível dos escritores - culpa da Broadway, Hollywood, Globo, talvez?, enfim, dane-se. A cafeína acabou. A cafeína acabou, e me deixou a fitar uma caneca. A cafeína acabou, e se a cafeína é o combustível de todos os escritores, e se o fim da cafeína me deixa, para fitar, não sua superfície negra, mas uma caneca vazia, e se uma caneca vazia, prum aprendiz de escritor aprendiz de humanista aprendiz de filósofo aprendiz de aprendiz como eu, nunca é apenas uma caneca vazia, a caneca vazia se torna um recipiente, que se torna um espaço, que se torna uma casa, que se torna um cômodo, que se torna.
    O cômodo. Vazio. Como a caneca. O que, prum aprendiz de poeta aprendiz de altruísta aprendiz de apaixonado como eu, nunca é apenas um cômodo vazio. O vazio de um cômodo é cheio de ausências, que são, inteiras, lembranças de presenças. Olho ao redor e me percebo num cômodo. E olhar ao redor, percebendo-me num cômodo, é como acender a luz de uma casa vazia em que nunca se esteve antes – deparando-se com móveis, cores e texturas que jamais poderiam ter-se previsto ali caso a luz não fosse acesa. Olhar ao redor e perceber-se sozinho num cômodo te faz recordar das presenças agora ausentes e, assim, das ausências e, assim, dos vazios, do enorme vazio do cômodo em que estás, sozinho. E não mais se pode apagar a luz.
    Eu, vazio. Como a caneca. Eu, cujo corpo - em que foi parar toda a cafeína que antes havia na tal caneca, agora vazia - não soube o que fazer ante a impossibilidade da poesia, vi-me por ele obrigado a acender a luz e me deparar com. Deparo-me comigo mesmo dançando sozinho no meio do quarto, simulando a lembrança que de todas parece a mais bonita. Eu, vazio, eu, aprendiz de tudo o que mora ao lado, eu, mais que acomodado, eu danço sozinho no cômodo vazio, de passado, transformando a lembrança de nossa valsa de dois em dor, transformando a beleza em desamor, como o vazio do cômodo que, de ausência, em lembrança se transformou, ou um botão prestes a virar flor – só que o contrário. Eu aqui, onde pela última vez ouvi a batida acidental da cabeça na cama emitindo aquele barulho oco que conhecíamos muito bem. Eu aqui, onde pela última vez senti o calor do seu corpo junto ao meu corpo, me fazendo refém. Eu aqui, relembrando um você mui alegre e um eu tão entregue, apesar da muda consciência mútua, da muda consciência consentida de que todas aquelas penosas carícias tivessem gosto de despedida.
    Eu, vazio. Como a caneca que, como toda caneca vazia, não atrai poesia. Por isso acabou-se a cafeína nessas longas horas que se passaram desde que sentei-me, vazio, neste cômodo vazio – cujas lâmpadas metafóricas, nesse momento, ainda não se tinham acendido – à espera, à espreita, para pescar as palavras e fazer delas sopa de letrinhas, para vender e ficar rico de mais que apenas entrelinhas. Tudo porque naquele dia a senhora escrita não estava facilitando pra mim, e as palavras demoravam mais a vir do que de costume, dando margem ao silêncio, criando a necessidade da cafeína na veia e todos os demais acontecimentos decorrentes destes. Talvez isso fosse apenas uma forma inconsciente de boicotar as próprias palavras, e aquela relutância toda não passasse de medo de mergulhar tão fundo naquela coisa que se teme a ponto de confundir com a realidade criada, os sentimentos reais, atuais, tão mais sensíveis que ideais, e tão mais simples, tão mais leves e livres de utopias e teorias inúteis e magistrais; medo de sentir mais uma vez aquelas dores que só são sentidas quando se mergulha realmente fundo, fundo demais mesmo pra você que, se pudesse escolher, seria o tipo de poeta que vive o amor apenas na poesia, mas o desconhece, e que você não é, e que você não pode, o sabendo tanto a ponto de dizer: ele é exatamente como eu queria ser.
    Fim da noite, das forças e de mais um texto sôfrego e cuspido. Eu, vazio. A caneca, vazia. E sequer uma linha de poesia pra interromper os maus pensamentos, e fazer companhia.